
Um concerto para Affonso e Marina

Momento de descontração no bate-papo na Biblioteca do Colégio Loyola, em BH
Despedidas
Começo a olhar as coisas
como quem, se despedindo, se surpreende
com a singularidade
que cada coisa tem
de ser e estar.
Um beija-flor no entardecer desta montanha
a meio metro de mim, tão íntimo,
essas flores às quatro horas da tarde, tão cúmplices,
a umidade da grama na sola dos pés, as estrelas
daqui a pouco, que intimidade tenho com as estrelas
quanto mais habito a noite!
Nada mais é gratuito, tudo é ritual
Começo a amar as coisas
com o desprendimento que só têm
os que amando tudo o que perderam
já não mentem.
(Affonso Romano de Sant’Anna)
Despediu-se há poucos dias Affonso, poeta mineiro, professor, jornalista e intelectual que entendia da singularidade das coisas, porque se fazia muito íntimo delas, desvendando com elas o ser-estar do mundo. Partiu um mês depois de sua querida Marina, em meio ao carnaval, ele que tanto nos ensinou sobre a carnavalização, a grandeza e a originalidade da cultura brasileira. Seguiu de perto sua companheira de vida inteira, também ela grande escritora e intelectual. Deixaram silencioso o apartamento de Ipanema, vazio, pela primeira vez, depois de muitos anos.
Em 2013, durante a Semana de Cultura, Arte e Literatura, quando comemorávamos os 70 anos do Colégio Loyola, tivemos a alegria de tê-los conosco. Uma experiência única e marcante, registrada com generosidade e emoção nas redes sociais do poeta:
Indescritível
Inenarrável o que vivemos (Marina e eu) no Colégio Loyola de BH, hoje. Centenas de alunos se revezando nas palestras e conferências, corredores cheios de poemas e fotos, música e poesia, todos atentíssimos participando. Isto, mais os competentes e alegres professores são a reafirmação de que a educação e a leitura são o melhor caminho para formar pessoas.
(25/04/2013 – Affonso Romano de Sant’Anna)
Indescritível também para nós, Affonso, que relembramos essa presença como saudosa homenagem. Lidos por gerações de estudantes, contávamos com ambos para despertar nossos melhores afetos, ativando-os em vista do bem comum, bem à maneira de Inácio de Loyola, que nos faz ver e sentir que o “amor é comunicação de ambas as partes…”
E também Marina registrou, emocionada, esse encontro, em seu blog, dias depois:
O Colégio Loyola é estupendo. Tente imaginar 280 crianças pequenas, do Fundamental, sentadinhas no chão lado a lado, costas contra a parede, ao longo de dois lados de um corredor bem comprido. E essas crianças estão tocando flauta, acompanhando o violão do professor Marcelo. Assim, percorrendo esse corredor sonoro e amoroso, começou minha visita. Coisa pra chorar de emoção.
(27/04 /2013 – Marina Colasanti)

Marina sendo saudada pela orquestra infantil de flautas do Colégio Loyola.
De fato, ainda quando passamos por esse corredor sonoro e amoroso, sentimos como ecoa a poética autoral desse casal de escritores, atuando ativa e criativamente no cenário cultural e jornalístico brasileiro. Expressavam, nessa altura, com alegria e entusiasmo, todo poder de transformação que a educação carrega consigo: a tradição viva e o olhar afetivo para o futuro. Num mesmo espaço, as crianças embalavam o olhar emocionado dos poetas – atavam-se as duas pontas da vida num fio bem comprido…
No momento em que nos sentimos órfãos de Marina e Affonso, manifestamos nossa gratidão por esse encontro, às portas da celebração de mais um aniversário do Colégio Loyola. Trazemos ,junto a essa memória, um trecho de uma das crônicas mais conhecidas de Affonso, capaz de falar aos nossos corações:
Há um período em que os pais vão ficando órfãos dos próprios filhos. Não mais os pegaremos nas portas das discotecas e festas. Passou o tempo do ballet, do inglês, da natação e do judô. Saíram do banco de trás e passaram para o volante das próprias vidas.
(Affonso Romano de Sant’Anna)
Certamente, algo passou, mas muito também permanece e ganha corpo entre nós, com essa memória agradecida que ainda nos envolve. Muito de ambos sobrevive. Por aqui, já não são mais nossas crianças com seus acordes alegrando e emocionando Marina e Affonso. Daqui para frente, a delicadeza da palavra de ambos preencherá tudo o que resta, afirmando-se acima de toda lembrança: é verdade, Marina, “a gente se acostuma, mas não devia…” – mas como é bom saber e sentir, hoje, a verdade deste anúncio! O concerto agora é por conta de vocês!
Em memória de Marina Colasanti e Affonso Romano,
cuja arte e palavras iluminaram gerações.